Os condenados da bola. Pressão e crise envolvem o Fluminense

Após a impressionante derrota do Fluminense para o Vitória da Bahia, na noite de ontem, algumas coisas podem ser esclarecidas para que não se cristalize ainda mais a equivocada ideia de que a responsabilidade pelo engessamento, pela apatia e desbaratamento do time tricolor se deve ao “bode expiatório” da moda, no futebol brasileiro

(foto: Lucas Merçon/Fluminense)

(foto: Lucas Merçon/Fluminense)

Lucio Massafferri Salles*, Pragmatismo Político

Após a impressionante derrota do Fluminense para o Vitória da Bahia, na noite de ontem, algumas coisas podem ser esclarecidas para que não se cristalize ainda mais a equivocada ideia de que a responsabilidade pelo engessamento, pela apatia e desbaratamento do time tricolor se deve ao “bode expiatório” da moda, no futebol brasileiro. Pelo menos para uma parte da imprensa esportiva, um segmento da torcida tricolor e alguns influencers, o “culpado” para o estranhíssimo fenômeno que paira sobre o Fluminense, no Campeonato Brasileiro, se chama Fernando Diniz.
Uai, você aponta o declínio do Fluminense somente no Campeonato Brasileiro?
Sim.
É nessa competição que o problema complexo pelo qual passa o Tricolor das Laranjeiras se mostra em sua face intensa e crônica, seja em termos de espetáculo ou resultados.

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Mesmo começando o ano sem jogar como nos melhores momentos de 2023, o Fluminense conquistou uma Recopa, sobre a LDU, jogando de modo competitivo o suficiente para isso. Se classificou para as oitavas de final da Libertadores em 1o lugar do seu grupo, jogando de modo competitivo o suficiente para isso. E se classificou para as oitavas de final da Copa do Brasil, jogando, sem sustos, de modo competitivo o suficiente para isso.
Até aqui, descrevo essas trajetórias percorridas pelo Fluminense, nesse ano de 2024, acentuando que elas se deram bem distantes do brilho de 2023. Aproveito para dizer que essas trajetórias percorridas na Recopa (conquistada), na Libertadores/2024 (até aqui) e na Copa do Brasil/2024 (até aqui), estão longe de ser uma catástrofe tal como aponta a espantosa colocação atual do time, na lanterna do Campeonato Brasileiro. Cabe lembrar que o Fluminense “lanterna” é também o time que está a 14 jogos invictos na Copa Libertadores da América. Considerando que a responsabilidade desse contexto não deve recair sobre apenas uma pessoa, o que, creio, caracteriza ou bem uma leitura rasa, infantil, ou bem tendenciosa, observemos alguns fatores que podem ter contribuído para esse estranho estado de coisas que acomete o atual campeão da Libertadores da América, sem esquecer da pergunta que norteia o objetivo desse ensaio: como é possível esse time do Fluminense estar jogando tão abaixo do que pode e sabe, ocupando a lanterna do brasileirão?
Para fecundas e profundas reflexões, recomendo que se fuja da reposta rápida de que o “culpado” é a “média de idade do time”. Estamos falando, nada mais, nada menos, de Fábio, Samuel, Felipe Melo, Marcelo, Cano, Thiago Silva (que ainda não estreou), Ganso, enfim (nem cabe citar André, Árias, Martinelli, Marquinhos, etc…). Jogadores potencialmente de alto nível, recém campeões internacionais, duas vezes, nos últimos 6 meses. O primeiro e mais óbvio aspecto a se destacar é o início tardio da pré-temporada/2024. Nem ao menos um mês o elenco principal do Fluminense teve para se preparar para as decisões da Recopa, contra a LDU, em Quito e no Maracanã. Essa irregular pré-temporada inclui a perda do zagueiro e capitão Nino; um elo central na liderança e união do elenco. Destaco também, nesse curto espaço de tempo, o período de acolhimento para a adaptação de vários jogadores contratados para a temporada de 2024 (Gabriel Pires, Marquinhos, Terans, Douglas Costa, Renato Augusto, Antonio Carlos/que teve mais dias de preparação). Sim, eu sei que alguns estão jogando muito abaixo do que se projetou. Outros, mal jogaram.
O que há com esse time?
O segundo aspecto é o relaxamento natural de um grupo que veio de um ano intenso com conquistas inéditas, um ano, também, com altos e baixos, mas que se concluiu de maneira épica envolvendo uma catarse coletiva de alegria/euforia, entre torcida e clube. Relaxamentos muitas vezes não têm absolutamente nada a ver com “salto alto” ou “soberba”. Sobre isso, mais à frente falaremos também dos meios de comunicação e da pressão que esses fazem na cobertura diária dos times. Não abordaremos como fator de influência o aspecto de relacionamento interno – do grupo como um todo – uma vez que é compreensível que ocorram pequenas insatisfações, atritos, em grupos de trabalho grandes que convivem diariamente, sob pressão, há dois anos ou mais juntos. Se houve algo mais grave, capaz de ser apontado como um ponto que possa ser destacado como determinante nesse estado de apatia quase coletiva do time no Brasileiro, esse algo não veio à tona.
O que há com esse time?

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A respeito disso, o que se têm de concreto são apenas especulações de mesa de bar ou fofocas esportivas disseminadas a esmo, na Rede. No campo, de um modo geral, o Fluminense vem mostrando dificuldades na criação de jogadas, sem criatividade alguma, mostrando-se um time totalmente entrevado para conseguir ultrapassar as defesas dos adversários. Isso pode responder pelos poucos gols marcados, principalmente em jogos contra times mais trancados atrás. De certo modo, esse problema se liga à inoperância nas finalizações. Essas têm sido poucas, ou quase nenhuma em alguns jogos, para além dos inúmeros desperdícios observados no decorrer desse ano de 2024 (diferentemente da temporada de 2023). Cabendo ressaltar que o Fluminense literalmente jogou na lata de lixo pontos preciosos, recentemente, exatamente nesse contexto que cai na conta do significante “desperdício”.
Outro aspecto problemático está ligado à saída do ótimo zagueiro Nino, um líder no grupo, uma vez que, desde a sua saída, a defesa tricolor vem falhando infantilmente e seguidamente, seja errando em posicionamentos, seja se comportando com desatenção. O Fluminense está tomando muitos gols e fazendo poucos; fato. A baixa intensidade, que aparece como apatia, se reflete também nesse baixo volume de jogo, na chamada intensidade (“fome”, “vontade”, “ímpeto”). Enfim, o time dá a impressão de que não consegue jogar nem mesmo circulando com a posse de bola, como sabia fazer muito bem.
Se quebra uma linha, não consegue ligar com os jogadores que estão posicionados mais à frente. Para quem vê os jogos com o olhar cobrindo todo o campo fica clara a impressão de que o time joga como se estivesse todo desarrumado, sem energia e mal posicionado. Mais um fato a se destacar: são as constantes mudanças feitas em determinados setores da equipe, seja para repor por lesão ou para potencializar a posição. É fato que times mundialmente reconhecidos como possuidores de alto rendimento e nível técnico possuem jogadores versáteis, capazes de jogar em duas ou três posições com desenvoltura. Porém, isso requer muito treino e processos de adaptação com tempo, algo que um time com pré-temporada desarrumada, perda de jogador sem reposição no mesmo nível e alta pressão externa, pode sentir bastante, gerando, inclusive, o tal efeito da instabilidade ou da oscilação (típica de posturas ainda não totalmente assimiladas e com baixo nível de autoconfiança).
O último aspecto que destaco é a pressão da torcida. Cabendo lembrar que, nessa era virtual da internet e das suas redes sociais, a comunicação é capaz de amplificar afetos em diversas intensidades e direções. A internet é a maior revolução tecnológica no campo da comunicação, depois da invenção da escrita. O impacto nas mentes, das falas, imagens e escritas mescladas em hipermídias é algo extremamente potente e tem sido cada vez mais estudado por profissionais das áreas científicas da psicologia e da comunicação. Em outra crônica/ensaio, que escrevi no início de março (2024), apontei que a pressão já constatada naquele momento, sobre o Fluminense, poderia ser nociva ao time, considerando todos esses problemas que se acumularam desde o início do ano de 2024.

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Não se trata somente de uma subida de patamar, pelo fato do clube ter conquistado a Libertadores. Há uma especificidade da torcida do Fluminense: a do título inédito, sonhado, e do papel histórico que esse clube ocupa no cenário brasileiro.
Há também o aspecto da imprensa, em sua maior parte uma imprensa que não é imparcial e que dedica fluxos de criticas e cobranças diferenciados, para os próprios clubes pelos quais o profissional da comunicação torce, ou pelos quais se tem alguma antipatia ou simplesmente interesse comum. Esse dado reforça o panorama de um País imerso em problemas de ordem socioeconômica que leva a sério o futebol e que tem resenhas esportivas diárias que acabam insuflando rivalidade intensa, capaz de descambar para ódio (na arquibancada e arredores de estádios), mas, que, trata política como brincadeira. Apontando esse aspecto da massa brasileira, cabe ainda indicar alguns tópicos problemáticos envolvendo a comunicação tradicional e a comunicação em rede.

No contexto do que foi apontado acima, muitas vezes se pode intensificar o clima de ódio quando se destaca com mais peso momentos negativos ou ruins de um time ou os erros de um técnico, sem observar aspectos positivos (é raro que tudo esteja ruim…).
Esse tipo de tendência, um equívoco humano que só pode ser sanado se a pessoa se der conta dele e se quiser modificá-lo, parece ter contribuído para o ódio que uma parte da torcida do Fluminense passou a dedicar ao ex-treinador Fernando Diniz. Nas redes sociais, essa intensidade negativa veio à tona. E, no caso dessas mesmas redes, a prática do sensacionalismo e do clickbait contribuem tanto como fator externo, negativo, de pressão sobre um time, como também como agente de insuflação de ressentimento, ódio e depreciação de jogadores e demais profissionais. Curiosamente esse mesmo treinador, Fernando Diniz, denuncia essa questão constantemente, descrevendo tal mecanismo como uma “máquina de moer e massacrar jovens atletas” (e não somente esses, que fique claro). Como estudioso interessado na comunicação em rede, atesto que a geração do conflito/polêmica, alinhado em receitas algorítmicas pautadas por técnicas de psicologia comportamental, é um dos motores principais do chamado engajamento. Há quem acesse febrilmente plataformas para “descarregar” a alma, para ser lido/visto, para despejar frustrações, para brincar de linchar na rede e por detrás da tela, sentindo-se protegido dos olhares e ouvidos que são próprios às relações presenciais corpo a corpo (aludo aos haters; pesquisem sobre a aurora do velho 4chan) . Há, também, quem faça desse tipo de “consultório de terapia coletiva” um negócio: receber doações, PIX, super chats, para dar visibilidade/voz a uma massa carente de ser lida/escutada. A obrigação de fazer conteúdo para cativar e manter um público e fazê-lo crescer, incita alguns a inventar problemas, criar ou acentuar conflitos, teorias da conspiração, podendo, inclusive, expor reputações à ataques virtuais pelos enxames formados em rede. O criador de conteúdo muitas vezes fica aprisionado ao temor de ver o seu veículo de comunicação perder seguidores/inscritos, caso não entre na dinâmica devoradora da produção de fatos, sem fim, para além da boa e simples informação.
Em suma, a emergência por resultados positivos, constantes. Α ideia de que se tem que vencer sempre e ir bem toda hora, que é tributária da ideia de que brasileiro não curte futebol, mas, sim, vencer. A tendência a fazer da crítica somente o destaque de defeitos sem valorizar aspectos positivos. A inobservância de que jogadores de futebol não são máquinas e nem objetos descartáveis.

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Tudo isso compõe o multifacetado problema que acomete o Fluminense no momento, mesmo não se tratando de algo capaz de ser dirigido com exclusividade; todos os clubes são passíveis de se ver no olho do furacão desses fenômenos. Criou-se uma expectativa tão grande sobre o Fluminense – ao mesmo tempo que se alimentou maliciosamente, de modo sutil, uma cobrança igualmente gigante –, que mesmo sendo o atual campeão da Libertadores, da Recopa e de um recente bi carioca com histórica goleada sobre o maior rival, o clube se encontra nesta surreal situação: vai bem, mesmo com problemas, na Copa do Brasil e na Libertadores em 2024, enquanto amarga uma lanterna no Brasileirão, jogando nessa última competição como se estivesse febril, apático. O que há com o time do Fluminense? Nesse percurso recente, o time perdeu de uma maneira bastante ruim o treinador que os ajudou a construir todas essas glórias. Se, por um lado vê-se muitas manifestações de carinho e gratidão, para com Fernando Diniz, por outro, vê-se ódio, dentro da própria torcida tricolor, além das ironias, deboches, por parte de alguns profissionais (!?) da imprensa esportiva. As cobranças desmedidas movidas por ímpeto imediatista, em função das derrotas ocorridas muito mais numa direção, acabam inevitavelmente criando um ambiente de insegurança crescente no espaço que faz a liga vital entre time e torcida, algo que acaba piorando rapidamente se não for observado para ser bem cuidado. A cobrança/pressão por derrota, simplesmente, sem o devido processo de entendimento real sobre o apontado e não detectado “elo de liga, que se soltou” (e que não é algo uniforme, único) acaba afetando, também, o necessário fortalecimento psicológico do grupo de jogadores, gerando uma onda maior de cobranças/pressão propícias a influenciar em maus resultados.
O que há com esse time?
Os deuses da bola estão com ela nas mãos.
Vejamos o porvir.

 

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*Lucio Massafferri Salles é jornalista, psicólogo/psicanalista e professor da rede pública de ensino/RJ. Doutor e mestre em filosofia pela UFRJ, especialista em psicanálise pela USU, realizou o seu estágio de Pós-Doutorado em Filosofia Contemporânea na UERJ. É criador do Portal Fio do Tempo (YouTube).

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