Número de suicídios de PMs no primeiro ano da gestão Tarcísio subiu 30% em relação a 2022 e é quase o dobro (95,5%) do que foi registrado em 2015. “A corporação está sendo mais nociva para os policiais do que os ditos marginais”, diz especialista
Polícia Militar de São Paulo
Jeniffer Mendonça, Ponte
Atenção: esta reportagem trata de saúde mental e pensamentos suicidas – que podem gerar gatilhos. Caso você não esteja bem e precise conversar com alguém, recomenda-se entrar em contato com o Centro de Valorização à Vida (CVV), que funciona 24 horas e pode ser acionado através do telefone 188 (ligação gratuita) ou neste site. Você ainda pode buscar uma unidade de saúde mais próxima da sua casa por meio do Mapa da Saúde Mental.
“Conseguimos reduzir ano passado 20% dos casos de suicídio”, declarou nesta semana o secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, em entrevista à Jovem Pan, ao responder uma pergunta sobre policiais que tiram a própria vida. Números da própria Polícia Militar, obtidos pela Ponte Jornalismo via Lei de Acesso à Informação (LAI), desmentem o secretário: em 2023, 31 policiais cometeram suicídio, o maior número em 11 anos e um aumento de 63% em relação ao ano anterior. Foi a segunda causa mais frequente de mortes de policiais, atrás de morte natural (32).
Mortes de policiais militares no estado de SP
Considera mortes violentas e não violentas, em serviço e de folga
Fonte: Polícia Militar do Estado de São Paulo via Lei de Acesso à Informação
Morte natural engloba casos de doenças e homicídio acopla lesões corporais seguida de morte e latrocínios, já que a corporação apenas separou esses indicadores a partir de 2022 nos dados enviados. A PM não explicou a categoria “Outros”.
Os dados também colocam em xeque a política adotada pelo gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) de montar operações especiais da PM que promovem dezenas de mortes em bairros pobres em nome da bandeira de combater os homicídios de policiais — caso da operação Escudo, que matou 28 pessoas na Baixada Santista entre julho e setembro do ano passado, e da segunda operação na mesma região, também chamada de Escudo ou Operação Verão, que matou 39 pessoas desde 3 de fevereiro, em meio a dezenas de denúncias de torturas, ameaças e execuções.
Os homicídios de PMs, contudo, estão em queda constante e foram responsáveis por menos mortes do que as causas naturais (decorrentes de doenças, por exemplo), acidentes e suicídios. Em 2023, foram 16 vítimas de homicídio, o segundo menor número da série histórica, o que representou uma queda de 82% em relação a 2012, ano que teve o índice mais alto do período e concentrou ataques do crime organizado contra policiais. Além disso, policiais correm mais risco de vida quando não estão vestindo a farda: um PM tem oito vezes mais chance de morrer no horário de folga. No caso dos suicídios, 96% ocorreram fora do horário de trabalho.
“Isso mostra que, se a gente quer falar sobre a vida do policial, sobre o policial estar vivo, o policial estar saudável, talvez a gente esteja, às vezes, concentrando esforços no lugar errado”, aponta Fernanda Cruz, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES). Para ela, a retórica do governo estadual, que coloca no centro a questão do homicídio de policiais, acaba apagando problemas que causam mais mortes, como os suicídios.
É importante lembrar que, dos 16 policiais vítimas de homicídio no ano passado, em pelo menos dois casos os PMs foram assassinados por um colega de farda. Em Salto, o capitão Josias Justi da Conceição Junior e o sargento Roberto Aparecido da Silva foram mortos, em janeiro, pelo sargento Claudio Henrique Frare Gouveiaem Salto, que acabou condenado a 45 anos de prisão pelo crime. A motivação teria sido divergências por escalas de trabalho que estariam afetando sua vida pessoal.
Em abril, como a Ponte revelou, um soldado foi morto pelo seu superior após uma discussão que também envolveria o mesmo motivo. Na época, policiais denunciaram à reportagem que gritos e humilhações faziam parte do cotidiano de quem serve na 4ª Companhia do 46º Batalhão da Polícia Militar Metropolitano (BPM/M) e que a mudança de escala de trabalho estava sendo usada como um tipo de punição dentro do quartel por causa de danos a viaturas.
São Paulo: campeão do suicídio policial
São Paulo é o estado que lidera o número de vítimas de suicídios entre profissionais de segurança pública e, só em janeiro de 2024, já constam duas vítimas, segundo o painel estatístico do Sistema Nacional de Estatística de Segurança Pública e Justiça Criminal (Sinesp), do Ministério da Justiça, que também apontam para nove suicídios cometidos por policiais civis em 2023. Os dados da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP) enviados ao Ministério apontam 30 PMs vítimas de suicídio, um a menos do que o número informado à Ponte via LAI.
A pesquisadora Fernanda Cruz acredita que as corporações ainda tratam o tema como tabu. “Muitas instituições ainda veem esse tipo de caso como uma vulnerabilização da própria instituição”, afirma. “Existe uma restrição em discutir esses casos por conta de o quanto isso afeta a imagem do policial herói. A imagem que a sociedade tem na cabeça quando pensa num policial é aquele policial viril, aquele policial forte.”
Coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a psicóloga Juliana Martins concorda e indica que valores como força, masculinidade e de enfrentamento ao inimigo cultuados pela corporação não são vistos como um problema institucional. “Quando o policial precisa de ajuda, não raro as organizações tratam isso como um problema individual e pouco olham para o quanto a própria organização policial está adoecendo esses profissionais. Então quando a gente tem os números de suicídio, possivelmente a gente tem um número infinitamente maior de profissionais doentes, que não estão se reconhecendo”, alerta.
Fatores referentes a condições de trabalho são as hipóteses mais comuns observadas em estudos sobre o que levam PMs a tirarem a própria vida ou a praticarem atos extremos como assassinar colegas, de acordo com Adilson Paes de Souza, que é doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direitos Humanos pela mesma universidade e tenente-coronel da reserva da PM paulista. “Isso vai desde as instalações físicas, se é um ambiente que se possa promover um certo acolhimento para o policial, e as relações entre pares e entre pares e superiores”, explica.
“A militarização entre muito nesse quadro. Nós temos uma organização muito fechada. Ou seja, o modo como a instituição está estabelecida, com a relação entre seus membros, o ambiente de trabalho, podemos falar em termos gerais, colabora muito mais do que o risco inerente à profissão para a prática do suicídio”, prossegue. “Esses números mostram que a instituição está sendo mais nociva para os policiais do que os ditos marginais que possam querer tirar a vida do policial”.
Outro sintoma de um problema na corporação é o aumento de exonerações, ou seja, policiais militares pedindo demissão, segundo José Vicente da Silva Filho, que é coronel reformado da PM paulista e membro do Conselho da Escola de Segurança Multidimensional da USP. Uma reportagem da Revista Veja revelou que, até 9 novembro de 2023, 614 PMs haviam sido exonerados naquele ano. O número, ainda que incompleto, demonstra que a insatisfação vem crescendo desde 2017, quando foram contabilizados 296 casos, o que equivale um aumento de 107,4%.
“Isso é um indicador de mal-estar de uma parte do contingente da PM, porque sair da corporação, com todo o salário que dá, hospital que atende familiares, que é bem razoável, a Cruz Azul, tudo isso são benefícios a que esses policiais renunciam quando vão embora”, aponta José Vicente. “Claro, é uma perda grande de ativos para a PM, que demorou muito para recrutar, preparar, dar experiência para eles, mas é um indicador também de problemas na qualidade do ambiente de trabalho.”
Dados ocultos
Os pesquisadores sinalizam que a lógica de enfrentamento do governo Tarcísio piora as condições de saúde do policial e também impacta no atendimento à população. “Cada vez mais as ações da Secretaria de Segurança Pública vêm demonstrando uma política apontada no confronto, com a justificativa de que isso vai defender e proteger a população, mas tem o outro lado dessa moeda, que é a vulnerabilização desses policiais. Eles vão estar mais tensos, com mais medo, mais preocupados, com mais raiva também. Então isso vai gerando uma reação em cadeia”, enfatiza Juliana Martins.
Diagnosticar o quão fundo o problema é um desafio que não é recente, especialmente pela falta de dados qualificados e que possam ser devidamente checados. A Ponte pediu que os dados informassem gênero, idade, raça/cor, orientação sexual, cidade onde ocorreu, dentre outros detalhes que a PM se recusou a fornecer. Apenas foram passados números fechados por mês e com separação por serviço e na folga.
No Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, que traz dados de 2022, Juliana Martins tinha indicado a dificuldade de obter dados sobre suicídios de policiais civis e militares de todos os estados brasileiros. A Ponte, por meio do projeto De Olho na Polícia, também mostrou que 17 estados não divulgam espontaneamente informações sobre mortes de policiais e, entre os que divulgavam, poucos traziam a questão do suicídio.
No IPPES, que todos os anos faz um levantamento sobre suicídios de profissionais da segurança pública, Fernanda aponta que a PM paulista, pela primeira vez, se recusou a fornecer dados para a construção do boletim referente aos dados de 2023. “Pra mim, é um indicativo do quanto a polícia quer ou não a participação da sociedade na visibilização desses dados, porque se o discurso quando tem a morte de um policial por homicídio é tão aberto, isso vem no discurso oficial do secretário, e é quase que o oposto quando a gente fala no caso dos suicídios”, critica.
Em agosto do ano passado, Derrite publicou uma resolução para criar um grupo de trabalho destinado a formular o projeto “Cuidando de quem protege”, para pensar políticas públicas de saúde física e mental aos policiais, formada apenas por integrantes da PM. Dois dias depois também foi criado um grupo com a mesma finalidade para a Polícia Civil, que continha inclusive membros da PM. A resolução culminou em outra, assinada em 1º de fevereiro deste ano, no qual a Secretaria de Segurança Pública instituiu o Núcleo de Assessoramento e Gestão em Saúde para produzir estatísticas, captar recursos, acompanhar convênios e criar protocolos de emergência.
À Ponte, o ouvidor das Polícias, Claudio Aparecido da Silva, disse que a criação desses grupos de trabalho atendeu a uma demanda da Ouvidoria, mas o órgão não teve participação na discussão e que ainda não está claro como o suicídio será tratado ali. Ele afirma que a Ouvidoria costuma ser procurada por policiais adoecidos. “A Secretaria não tem dado ao tema a atenção e a relevância que ele merece ter, porque o que a gente percebe é que há um adoecimento na tropa, no interior da tropa”, analisa.
“E, quando a Secretaria tenta responder, responde de forma estabanada, de forma que infelizmente não demonstra qualquer planejamento para a tomada de decisão daquela ação e gera conflitos, como gerou com a criação de dois grupos, porque o segundo grupo só foi criado após gritaria da Polícia Civil”, critica. Para Claudio, o governo “cerceia a participação da sociedade civil” ao não incluir a Ouvidoria na discussão dessas políticas.
O ouvidor defende que os problemas de saúde mental do policial intensificam a violência dos profissionais. “Parte dos erros cometidos por policiais na rua são em razão desse tipo de comportamento da Secretaria, que não tem uma política de atenção à saúde mental para um grupo de pessoas que fazem um trabalho que é extremamente extenuante, e além disso tem um agravante da desvalorização salarial que força o cara a ir para o bico”, afirma.
José Vicente destaca que a gestão Tarcísio tem retrocedido em avanços conquistados. “Todo o projeto de prevenção que a PM vinha desenvolvendo desde o final dos anos 90, quando implantou a polícia comunitária, quando implantou a qualidade do trabalho, proteção à população, a implantação do Método Giraldi [regras para uso da arma em abordagens] lá nos anos 90 também, de preservação da vida, não só dos policiais, mas também daqueles que fazem confronto com os policiais. Tudo isso está sendo desconsiderado a partir de agora”, critica.
Um exemplo dado por José Vicente é o fato não há mais o afastamento imediato de policiais que se envolveram em mortes, algo que inclusive é pleiteado por movimentos sociais, e que permitiria uma avaliação mais aprofundada sobre os impactos da ocorrência no profissional. “Ele [policial] pode ficar estressado, sem conseguir dormir, começar a beber mais álcool, começar a brigar em família, começar a dar problema no trabalho depois disso. O impacto é inevitável, a menos que o policial seja um psicopata”, afirma.
Fernada Cruz, do IPPES, destaca que só ampliação do acompanhamento psicológico não pode ser visto como única solução. “É preciso desmistificar um pouco essa ideia de que é só o profissional de saúde que é suficiente para lidar com esses casos. A gente precisa falar de prevenção em uma série de graus, desde a prevenção primária, das campanhas de conscientização para o policial na ponta, até campanha de conscientização também para os comandantes, porque muitas vezes o adoecimento mental ainda é visto como fingimento de quem não quer trabalhar e isso não é verdade”, diz.
A psicóloga Juliana Martins, do FBSP, ainda evidencia a necessidade de mudanças na cultura dos corporações policiais, criando abertura para os profissionais se sentirem à vontade para pedir ajuda e alterando o que é visto como aceitável nas ações dos gestores. “O gestor não pode ser aquele que vai perseguir e humilhar, aquele que vai submeter o seu subordinado a cargas horárias excessivas, a uma política de trabalho e de enfrentamento que só vai expor esse profissional ao risco.”
O que diz o governo
A Ponte questionou sobre os dados fornecidos pela PM, a ausência de detalhamento das informações, o pedido da pesquisadora Fernanda Cruz que foi negado, a criação dos grupos de trabalho sem participação da Ouvidoria das Polícias e de outros integrantes da sociedade civil, os atendimentos realizados e os problemas apontados pelos especialistas. A Fator F, assessoria terceirizada da Secretaria de Segurança Pública, respondeu parcialmente aos questionamentos na seguinte nota:
A Polícia Militar oferece suporte e atendimento psicológico aos seus profissionais, por meio do Sistema de Saúde Mental da PM, que disponibiliza serviços de atendimentos psicossociais realizados por psicólogos e assistentes sociais do Centro de Atenção Psicológica e Social (CAPS) e do 41 Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS).
Atualmente existem 103 psicólogos atuando no Sistema de Saúde Mental da PM, sendo 95 psicólogos policiais militares, e 8 civis contratados pela Associação Beneficente Pró-Saúde Policial Militar. Além disso, com o objetivo de ampliar o cuidado com o policial militar, foi realizada em agosto a contratação de um serviço de telepsicologia, onde estão previstos quase 3 mil atendimentos clínicos mensais, ofertados aos policiais militares da ativa e veteranos. Desde 2003, existe o Programa de Prevenção a Manifestações Suicidas, com o propósito de prevenir e de reduzir a incidência de comportamentos suicidas. As ações de caráter preventivo são desenvolvidas visando identificar e mitigar, o quanto antes eventuais fatores de risco que possam favorecer tanto as tentativas como a própria consumação do suicídio.
A SSP também realiza periodicamente seminários, palestras e aulas, e disponibiliza cartilhas nas academias que buscam levar aos profissionais informações de caráter preventivo. Todas essas medidas de prevenção e promoção de saúde mental são adotadas em razão da complexidade da atividade policial, independentemente do local onde ela é exercida.
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